Precursores da Reforma em Portugal – Damião de Góis (cap. 3)

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Entre os lusos do passado temos alguém ilustre, que muito andou pelas cortes europeias, que foi amigo íntimo de Erasmo de Roterdão e conheceu, conversou e partilhou inclusive um jantar com Lutero e Filipe Melanchton.

Damião de Góis (1502-1574) era filho de Rui Dias de Góis, o qual era um nobre a serviço da rainha D. Leonor. A mãe era D. Isabel Gomes de Limi, natural de Alenquer, terra natural também de Damião. O pai falece cedo, vindo Damião a integrar a corte de D. Manuel I e em 1518 torna-se moço de câmara. Tal integração na corte permitiu-lhe viver perto do monarca e participar da vida da corte, assistindo a grandes cerimónias, conviver com grandes personagens, marinheiros e navegadores, diplomatas e outras pessoas igualmente importantes.

A corte de D. Manuel I era a mais famosa da Europa na altura, onde muito bem se comia e se vivia. Foi na corte que Damião de Góis assistiu às representações dos autos e farsas de Gil Vicente, entre elas o “Auto da Barca do Inferno” (1516-1517), tinha Damião 15 anos.

Também na corte, Damião fez amizade com D. João (o futuro D. João III), que tinha a mesma idade e com D. Henrique, dez anos mais velho, que viria a ser o conhecido cardeal-rei. Essa amizade viria a revelar-se útil anos mais tarde.

Quando D. João III subiu ao trono nomeou Damião de Góis como escrivão para a feitoria de Flandres, onde o mercado de Portugal se abastecia dos mais variados produtos e onde também se vendiam as especiarias que os navegantes portugueses traziam do Oriente. Vai assim o nosso personagem para Antuérpia ocupar esse posto com 23 anos de idade.

Em Antuérpia aprendeu o latim e desenvolveu-se em outras áreas, e começou a corresponder-se com personagens de destaque da intelectualidade europeia. Estudou na Universidade de Lovaina, teve aulas em Paris, Basileia e Pádua numa Europa sacudida pelo Renascimento e pela Reforma. Foi nesse tempo que se relacionou com Erasmo, com Melanchton, Lutero, Guilherme Farel, cardeal Bembo e Inácio de Loiola.

Enviado à Polónia pelo rei D. João III, no regresso, em cerca de 1531, Damião faz um desvio e passa por Vitemberga, onde visita Melanchthon e Martinho Lutero. Os três sentam-se à mesa numa pousada e jantam juntos trocando conversas interessantes. Os autores afirmam que Damião terá ouvido Lutero pregar num domingo de Ramos, mas só compreendeu as citações em latim, pois não sabia ainda o alemão.

Lutero e Melanchton
Lutero e Melanchton

Dois anos depois, em 1533 volta a Portugal, sendo aí nomeado tesoureiro da Casa da Índia, nomeação que não o agradou e pede que seja retirado desse cargo, pedido que foi aceito. Assim Damião volta à Europa e vai a Friburgo, onde fica na casa de Erasmo durante quatro meses e desenvolve uma amizade chegada com o humanista, sendo por consequência influenciado pelas suas doutrinas. Damião no seu percurso de estudos vai a Estrasburgo e a Genebra, centros importantes da Reforma.

Em 1538, em Lovaina, casa com Joana van Hargen, holandesa, filha de um membro do conselho do imperador Carlos V.

Damião de Góis vai se tornando cada vez mais uma figura intelectual de destaque na Europa, sendo o maior humanista português, sendo fortemente admirado, mas não só. Em Portugal não foram só os sentimentos nobres que se nutriram pelo humanista português, mas começaram a surgir invejas e ódios.

Damião de Góis vem a desenvolver uma amizade com um bispo etíope enviado como embaixador a Portugal, chamado Zaga Zabo. Ambos tiveram conversas e discussões sobre os diferentes costumes e tradições cristãos da Etiópia. Os pontos essenciais eram comuns, já outros nem por isso. Os cristãos etíopes sofreram influências judaicas (guardavam o sábado e a circuncisão) e islâmicas, outros aspetos do cristianismo etíope já eram mais próximos do Evangelho do que o catolicismo: não aceitavam a idolatria e  permitiam o casamento dos clérigos.

Assim Damião interessou-se pela causa dos etíopes, sendo-lhes muito tolerante e intercedendo junto de Paulo IV a favor da unidade do cristianismo e da tolerância face aos diferentes setores dentro do cristianismo. Nesse mesmo sentido escreveu duas obras em latim (uma delas dedicada a Paulo III) que receberam bom acolhimento europeu, mas o mesmo não se pode dizer em Portugal. Uma das obras foi apreendida em Portugal pelo Santo Ofício. O amigo de Damião, cardeal D. Henrique, inquisidor-mor, deu a notícia ao autor com palavras amigas que demonstravam a amizade entre ambos semeada no passado da infância. O humanista português não se agradou da censura e contestou a decisão, contestação essa que foi condenada, mas ainda assim D. Henrique demonstra apreço pelo pensador português, o que denota a notoriedade de Damião, pois não era hábito existir tanta cordialidade quanto a tais assuntos no Portugal tenebroso de então.

Um acontecimento vai atrair mais invejas ainda contra Damião de Góis, quando em 1545 é convidado a exercer o cargo de aio do infante D. João. O confessor do infante, o jesuíta Simão Rodrigues, não viu isto com bons olhos, pois tinha convivido com Damião em Pádua. Aconteceram conversas acesas sobre os temas que estavam em alta na Europa, tal como a Reforma, mas o jesuíta era avesso a essas “novidades” doutrinárias. Assim foi dar início ao fim do nosso pensador humanista, ao fazer uma denúncia no Palácio da Inquisição em Évora, acusando-o de herético e luterano.

Palácio da Inquisição em Évora
Palácio da Inquisição em Évora

Dessa primeira denúncia não resultou grandes consequências para Damião de Góis, a não ser o afastamento do cargo exercido como aio do príncipe. Não desistindo, a 24 de Setembro de 1550, o Jesuíta volta a fazer outra acusação. No entanto não foi dessa que o processo avançou, o que, segundo os autores, deixa os historiadores perplexos, sobre o que teria travado esse avanço sob as circunstâncias da época. Afirmam os autores que terá sido por influência do inquisidor frei de Jerónimo, que era tio de Góis.

No meio de todo este processo Damião não sabia de nada. As acusações eram verdadeiras, ainda que feitas com má fé.

A gota de água que fará transbordar tudo é o momento em que o cardeal D. Henrique, nomeia Góis como guarda-mor da Torre do Tombo, em 1558 e pede-lhe que escreva uma crónica de seu pai, o rei D. Manuel. Esta foi uma forma de compensar Góis pelo prejuízo causado pela apreensão do livro. A gota de água está em que nas crónicas era hábito sobrevalorizar-se as qualidades do rei e da corte em detrimento do rigor histórico, minguando os aspetos menos bonitos da atividade de pessoas de mais destaque da corte. Mas Damião de Góis não era homem para habituais comportamentos, usou de certa prudência na redacção, mas não se submeteu a tais distorções históricas. Mesmo com prudência muitos foram os nobres que se sentiram ofendidos ao ponto de o acusarem. Quando chegou às mãos do cardeal D. Henrique, Damião teve de fazer ajustes na crónica e omitir alguns aspetos menos positivos, saindo assim uma edição corrigida.

Crónica de D. Manuel I
Crónica de D. Manuel I

Em 1563 morrera o tio de Góis, que o protegia, e as acusações feitas devido à Crónica, prosseguiram, chegando às mãos de D. Henrique o processo contra o humanista português avançou. A partir daí tudo andou rapidamente, e até o genro de Góis, Luís de Castro, depõe contra o nosso personagem. O que levou a tal comportamento contra o sogro terão sido interesses ligados à família. Damião já estava preso nas masmorras. Foi ouvido dezoito vezes e nunca soube o motivo da sua prisão. Pediram-lhe “que confessasse tudo o que praticara contra a nossa fé católica, para poder ser merecedor da misericórdia da Santa Madre Igreja, que ela usa com os verdadeiros confidentes penitentes.” (p. 57).

A partir daí Damião passa a fazer a sua defesa de forma a fugir à violência da Inquisição. Deu pormenores das suas relações com luteranos e demonstrou a sinceridade na maneira como ocorreram essas relações com os vultos da Reforma, “não nega os contactos feitos, somente os explica.” (p. 59).

Outros vieram fazer acusações, afirmando que Damião levava uma vida folgada, que comia carne em dias não permitidos, que o próprio tinha-lhes falado dos reformadores e que na casa do acusado comiam e bebiam estrangeiros e cantavam coisas que não se entendiam. Vários vieram depor contra o pensador português movidos pela inveja de forma a acrescentarem alguma coisa às acusações. Mas não foram só essas más almas que se envolveram no processo, também houve quem se arriscasse e procurasse defender honestamente o humanista português.

Damião de Góis continuava preso, procurando confessar tudo de forma a poder aliviar a sua situação, mas o efeito era contrário, e a saúde ia piorando, chegando a estar num estado deplorável.

Em 1572, no dia 16 de Outubro, sai a sentença, sendo provadas as acusações, pediram então que abjurasse dos erros heréticos cometidos e Góis foi confiscado de todos os seus bens. Além disso ficaria perpetuamente preso no Mosteiro da Batalha. No entanto, por motivos desconhecidos, Damião de Góis voltou a sua casa a Alenquer, mas a 30 de Janeiro de 1574 aparece morto, caído na lareira.

Recentemente,  em 1941, aquando das obras na Igreja de Santa Maria da Várzea em Alenquer, procedeu-se à exumação dos ossos de Góis e aí percebeu-se que se tratou de um homicídio, pois os peritos verificaram que o crânio tinha uma ruptura que só poderia ser feita por uma agressão de terceiros.

Não se pode considerar Damião de Góis um protestante, mas foi um homem que se desenvolveu e se alimentou dos pensamentos do humanismo e da reforma, o que o torna num cristão progressista, um precursor da Reforma.

(ficha de leitura do capítulo 3 do livro “Precursores da Reforma em Portugal”)

Um pensamento sobre “Precursores da Reforma em Portugal – Damião de Góis (cap. 3)

  1. Boa tarde. Meu nome é Laércio e sou pastor da Igreja Presbiteriana do Brasil. Devo começar um curso de mestrado em história e minha ideia é falar sobre Damião de Góis e seu papel na tentativa de implementação de uma Reforma em Portugal. Caso possa me ajudar indicando bibliografias,desde já agradeço. Deus o abençoe ricamente.

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