As rachas já existiam, a Reforma trouxe foi respostas – Resumo do Capítulo 2 do livro “Teologia dos Reformadores”

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O que mais se destaca, para mim, neste capítulo é que mais do que lançar perguntas e abalar os fundamentos da cristandade a Reforma veio trazer respostas a perguntas que já andavam a ser feitas há bastante tempo. O clima geral dos tempos que precederam a Reforma era de ansiedade fruto de diversos aspetos, desde existenciais, eclesiológicos e até teológicos. E neste resumo do excelente capítulo “Sedentos por Deus – A Teologia e a Vida Espiritual na Baixa Idade Média”, espero delinear as ideias principais que fundamentam a ideia de que se engana quem pensa que a Reforma veio colocar uma nódoa horrenda numa bela estrutura de mármore que luzia diante da humanidade, na  verdade a teologia dos reformadores veio trazer respostas às ansiedades já instaladas e às quais ninguém conseguia responder satisfatoriamente.
Timothy George vai argumentar que houve um solo que preparou a chegada da Reforma Protestante e a palavra que o autor usa para definir esse solo é “Ansiedade”. A literatura, a arte e a teologia da época testemunham três tipos de ansiedades presentes: morte, culpa e perda de sentido. A teologia do reformadores foi uma resposta que foi ao encontro da ansiedade vivida naqueles dias.
1) Morte – uma crise agrária forte fez com que houvesse uma grande fome, ao ponto de existirem incidentes de canabilismo; além da fome houve a peste bubónica, ou como é mais conhecida, a peste negra que ceifou as vidas de pelo menos um terço da população de toda a Europa. Outra peste, importada do Novo Mundo pelos marinheiros, trouxe a presença da morte, a sífilis. Há a acrescentar ainda a invenção do canhão de pólvora que tornou as guerras bastante mais sangrentas. A morte então estava presente no dia-a-dia das pessoas e aparecia nos sermões, nas xilogravuras (gravuras em madeira), pinturas e esculturas. Conta-nos o autor que um pregador, João Capristano levou uma caveira para o púlpito e disse à sua congregação: “Olhem e vejam o que resta de tudo aquilo que uma vez lhes deu prazer, ou que outrora levou-os a pecar. Os vermes comeram tudo.” (p. 27). O sucessor de Calvino na cidade genebrina, Teodoro de Beza, afirma ter-se convertido ao cristianismo reformado fruto de uma grave do doença e do subsequente medo da morte.
2) Culpa – resulta da realidade da morte, pois a morte implicava julgamento que colocava o pecador diante de um Deus irado. Formas de aliviar a culpa passavam por flagelos, sacramentos, indulgências, peregrinações, relíquias, veneração de santos, o rosário, rezas, etc. – todo um sistema de penitências para se comprar o favor divino. Havia grande presença de confissão, obras de reparação, ativismo religioso e um acentuado foco nos horrores do purgatório e do inferno.
3) Crise de Sentido –  os pontos anteriores fomentavam uma falta de sentido, acrescentando-se ainda o facto de as fronteiras em outras áreas da vida terem sido ultrapassadas: geografia (Copérnico; fronteiras geográficas a alterarem-se) e social (camponeses contra o feudalismo). A cosmovisão de então estava a ser abalada e como é de se esperar quando isso acontece a insegurança tende a estar presente.
Havia uma sede de Deus. A Idade Média foi uma época de apetite pelo divino, mas as respostas encontradas eram insatisfatórias, o que por sua vez fazia aumentar ainda mais as ansiedades fundamentais de morte, culpa e perda de sentido, pelo que “A maior realização da Reforma foi ter sido capaz de redefinir essas ansiedades sob o aspecto de novas certezas, ou melhor, velhas certezas redescobertas. O mal estar espiritual da baixa Idade Media não foi a causa da reforma, mas certamente constituiu seu pré-requisito.” (p. 33)
Adiciona-se ao espírito de ansiedade a necessidade de uma nova definição de Igreja, vivia-se uma crise de confiança na identidade e na autoridade da igreja. As doutrinas da trindade e da cristalologia haviam sido fortemente e profundamente trabalhadas e estabelecidas nos concílios oficiais da igreja primitiva, mas a doutrina da igreja (eclesiologia) não. Nem Pedro Lombardo, nem Tomás de Aquino em seus trabalhos sistemáticos ofereceram um trabalho nessa área da dogmática. Já a partir do século XIV são apresentados vários tratados sobre A Ecclesia, revelando um novo interesse pelo assunto que coincidiu com grandes mudanças institucionais dentro da igreja. O autor desmistifica a ideia de que foi a Reforma que veio abalar a unidade da Igreja Institucional de então. Existiam na baixa Idade Média cinco modelos conflitantes de igreja:
1) Curialismo – uma teoria de governo eclesiástico que investia de suprema autoridade, tanto temporal quanto espiritual, o Papa.
2) Conciliarismo – no século XV surgiu uma demanda por uma reforma na cabeça e nos membros em toda a Europa. O corpo de Cristo estava dividido em obediência a três papas, era urgente uma reforma, surgiu assim a visão conciliar da igreja, que afirmava a superioridade dos concílios ecuménicos sobre o papa tanto no governo quanto na reforma da igreja. A ideia não era abolir o papado, mas eles acreditavam que a plenitude do poder não podia pertencer a um homem, pois era prerrogativa apenas divina. Do Concílio de Constança resultou a destituição dos três papas e a eleição de um novo papa, Martinho V. Os defensores da visão conciliar defendiam um papa, uma igreja indivisível e uma reforma moral tendo como exemplo a igreja primitiva. No entanto, o final do século XV viu o ressurgimento da monarquia papal e a extinção do movimento conciliar.
3) Wycliff e Huss – o Concílio de Constança, além de pôr termo ao Grande Cisma, declarou como heréticos os ensinos do teólogo inglês John Wycliff e ordenou que os seus ossos fossem queimados, além de condenarem à fogueira o principal defensor das ideais de Wycliff, John Hus, cujo tratado, De Ecclesia, teve um papel importante na ruptura posterior de Lutero com o papado. Wycliff entendia a igreja como o corpo predestinado de eleitos, ideia que Hus veio defender e proliferar. A igreja era constituída pelos eleitos de todos os tempos, a igreja visível não podia ser identificada como a verdadeira igreja. Eles diziam que era possível estar na igreja sem ser parte da igreja. Eles repudiavam o sistema papal e exigiam a sua extinção. Hus defendia o estudo das Escrituras e a eliminação dos abusos clericais, ele não defendia a a abolição da igreja institucional, mas a reforma da igreja baseada no exemplo de Cristo e dos apóstolos. Ambos apelavam à igreja invisível e à necessidade de se ter as Escrituras como norma superior de doutrina, o que proporcionou uma alternativa para o curialismo e o conciliarismo.
4) Franciscanos Espirituais –  dois elementos resultaram numa crítica à igreja da época: o ideal de Francisco da pobreza absoluta e a filosofia da história apresentada por Joaquim Fiore. Este dividiu a história em três eras, associadas a cada uma das pessoas da Trindade respetivamente, Pai, Filho e Espírito Santo. O início da Terceira Era seria então anunciada pelo surgimento de uma nova ordem de homens espirituais descalços, que se oporiam à hierarquia da igreja, preparando o caminho para um milénio de paz até ao Juízo Final. Os franciscanos identificaram-se com essa nova ordem e não hesitaram a chamar aos papas que se lhes opunham de anticristos.
5) Valdenses – remontam a sua origem a Valdo, que abandonou a carreira de rico mercador por uma vida de pregador mendicante e foram aqueles que voltaram em busca da ecclesia primitiva, construindo as suas congregações em torno da simplicidade da igreja primitiva. A sua visão de igreja tinha uma tendência bastante perfeccionista e anti-sacerdotal, a qual se refletiu em exclusão de vários rituais da Igreja Romana: dias santos, dias de festa, relíquias, peregrinações, indulgências e a crença no purgatório. Os valdenses sobreviveram às constantes perseguições devido ao seu modelo separatista de igreja e à prática de cultos clandestinos. Os valdenses existem até hoje como a Igreja Evangélica Valdense.
Neste sentido,
“A reforma do século XVI, portanto, foi uma continuação da busca pela igreja verdadeira que havia começado muito antes que Lutero, Calvino ou os padres de Trento entrassem na lista.” (p. 34)
A sociedade estava em crise, a eclesiologia também, mas ainda há mais uma área onde havia constante mudança: a Teologia. No período que antecedeu a Reforma, a Igreja encontrava-se cercada de vários modelos de espiritualidade e de comunidade cristã:
“A antiga ideia de que a Reforma destruiu completamente a imperturbável unidade de uma cristandade indivisível deve ser descartada, levando-se em conta o que um historiador chamou de “a pluralidade fértil” dos séculos XIV e VI. Cada um dos quatro reformadores que examinaremos neste livro foi moldado pelas correntes que caracterizaram o desenvolvimento teológico desde a morte de Tomás de Aquino (1274) até a de Gabriel Biel (1495).”
Timothy George destaca as principais tendências com que os reformadores tiveram de lutar:
1) O Escolasticismo – refere-se à teologia das escolas. Desde a tomada de Jerusalém pelos islâmicos (638) até à sua reconquista pelos cruzados (1099) a teologia era produzida principalmente pelos monges, os quais se dedicavam ao estudo da Bíblia, dos pais da igreja e da literatura clássica. Destaca-se Anselmo da Cantuária, que está na encruzilhada das culturas monástica e escolástica, cuja teologia começa com a fé e prossegue pelo entendimento até à visão.  Pedro Abelardo e Pedro Lombardo avançaram na tentativa da aplicação os instrumentos da razão aos dados da revelação, desenvolvimento que atinge o seu ápice com a Summa Teológica de Tomás de Aquino, que tentou harmonizar a filosofia de Aristóteles com o consenso patrístico. O objetivo da Summa Teológica era mostrar como Deus e toda a criação estavam unidos numa grande corrente de existência, pelo que a existência de Deus podia ser provada pela razão natural, ao contrário de Anselmo que defendia que era pelo próprio conceito de Deus. Pela razão poder-se-ia perceber a existência de Deus, mas não quem Ele é. O conhecimento de quem Deus é só é possível por meio das Escrituras. No entanto nem todos aceitaram a vitória final do tomismo, e três anos depois de ter morrido, um francês, Stephan Terrier, veio contestar algumas das teses de Tomás, fazendo um ataque ao aristotelianismo adotado por Tomás que elevou alguns pensadores a negar fundamentos da doutrina cristã como a imortalidade da alma.
Depois de Tomás seguiram-se dois teólogos franciscanos, Duns Scotus e Guilherme de Occam, que estiveram envolvidos numa mudança da teologia do século XIV a qual teve consequências significativas para o desenvolvimento da teologia durante o período da Renascença e da Reforma.
2) O Misticismo – Jean Gerson, um dos líderes do movimento conciliar, no século XV, distinguiu três caminhos para o conhecimento de Deus: a teologia natural, entender Deus pela razão a partir do mundo natural; a teologia dogmática, que procurava entender Deus a partir das Escrituras, dos credos e das tradições da igreja; e a teologia mística, em que a alma podia ter experiências com Deus de forma intuitiva e extática. Duas tradições surgiram na teologia mística da Idade Média: o misticismo voluntarista, cuja ênfase era a conformidade da vontade humana com a vontade de Deus através de estágios de purgação, iluminação e contemplação, esta via apresentava poucos desafios à estrutura ortodoxa da vida da igreja; o misticismo ontológico, cuja ênfase recaía na desconexão entre Deus e a alma, em que a pessoa tinha de se desligar de si mesma e de todas as outras criaturas de modo a que Cristo nascesse dentro da sua alma. A alguns parecia que Eckhart estava a negar o nascimento humano e histórico de Jesus, ou pior ainda, estava a colocar de lado a intermediação dos canais da graça sacramental. Deus atuava diretamente na alma da pessoa. Os discípulos de Eckhart traduziram a sua teologia para a linguagem popular. Um desses discípulos, Johannes Tauler foi publicado por Lutero, o primeiro livro que Lutero publicou foi uma edição dos sermões de Tauler. O misticismo influenciou Lutero na sua crítica à doutrina medieval da justificação, embora tenha abandonado as premissas básicas do misticismo ontológico. Zuínglio, no seu desdém pela materialidade da religião dando ênfase na imediação da graça, na apropriação direta e pessoal de Cristo pela alma faz lembrar os místicos., e Calvino, o menos místico dos quatro reformadores, chegou perto de uma compreensão mística na sua doutrina da presença espiritual verdadeira de Cristo na Ceia.
3) O Humanismo – tratou-se de um movimento de reforma que teve origem na seio dos intelectuais da Europa. O termo humanismo dizia respeito a um:
“(…) método particular de aprendizagem com base na redescoberta e no estudo das fontes clássicas da antiguidade, tanto pagã, isto é, romana e grega, quanto cristã.” (p. 48).
Eles defendiam o retorno às fontes. Em parte foi um movimento de reação contra o escolasticismo daqueles dias, o qual vivia de especulações áridas, que não traziam mudanças reais nenhumas. Erasmo pretendia uma reforma moral da igreja e da vida cristã por meio da educação que valorizasse a retórica ao invés da diabética, os clássicos ao invés dos escolásticos e a participação do mundo em vez do monastério. Uma das principais contribuições do humanismo para a renovação religiosa do século XVI foi uma série de edições críticas da Bíblia e dos pais da igreja, nomeadamente Agostinho, que foram bastante disseminadas pela recém invenção da imprensa.
“O humanismo, assim como o misticismo, foi parte da estrutura que possibilitou aos reformadores questionar certas suposições da tradição recebida, mas que em si mesma não era suficiente para fornecer uma resposta duradoura às obsessivas perguntas da época.” (p. 50).
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